Os objetos envelhecidos. Os objetos remanescentes. Lembro
das salas onde eu fazia passar as horas quando era criança como grandes espaços
completamente forrados de objetos. Alguns deles de uma contemplação passiva,
como objetos de artes, são para mim os mais aterradores hoje em dia. As vezes
me deparo com alguns que restaram ou que me couberam, parcialmente esquecidos
em algum canto de casas que são menos minhas agora. Esses objetos se acumulam e
retrospectivamente tenho uma perspectiva sobre a velhice em torno desses
objetos. Uma coisa engraçada é que na minha infância de convívio intenso com familiares
mais velhos, meus avós e tias-avós, conquistei um reconhecimento do meu apreço
respeitoso a determinados objetos, em outras palavras, não vou quebra-los; é
porque compartilho desse apreço de valorização contemplativa, da aura deles,
que quero chegar mais perto, mas isso quase não é uma brincadeira. Ou melhor, é
uma brincadeira com a aura. Quando meus parentes faleceram nessa aura toda não
resta mais espaço algum para brincadeira. Eu sinto. Talvez por sentir assim me
sinta digno da tarefa de guarda-los, talvez longe da minha vista cotidiana, do
peso da banalização desse olhar de volta, talvez ainda não seja tempo disso,
sou jovem ainda. Mas já avanço para a reformulação deles em mim, como objetos
da velhice, quero reaproxima-los na imagem que cultivo deles, quase incomunicável,
meus objetos de infância. Chamo de meus, muitos sumiram até da lembrança dos antigos
donos, agora são meus, do panteão da aura me olham de volta, me convocam não
sei a que. São objetos esquisitos, tenho até constrangimento de lembrar. São
salas de estar com um ruído de TV no fundo, são horas e horas de tardes frias
escovando o tapete da sala à contrapelo, desenhando, mirando uma estante, uma
cristaleira. Tem um elefantinho sempre de bunda para a porta da entrada,
recentemente quebrado. Tem duas árvores de metal, com retratos 3x4 pendurados,
estou em um deles, um galho fino à meia altura do cume. Mas esses objetos me
doem.
Penso em uma casa mais distante agora, da minha avó,
falecida recentemente. Uma casa recentemente frequentada e agora ocupada pela
minha tia-avó da minha infância e de toda minha vida, entregue aos cuidados de
uma cuidadora, que era da minha avó, nessa casa. Pois bem, essa minha tia fazia
um trânsito dos objetos para minhas tardes entediadas nessa cidade do interior
do Rio Grande do Sul. Do auge do meu ócio eu procurava inventar alguma
brincadeira, algum uso ou contemplação. Isso em uma casa completamente
abarrotada de objetos centenários, de cristaleiras, lembranças, placas,
retratos, louças, máquinas de costura, objetos de tias, mães, avós, de uma casa
assentada e que perdura uma administração feminina. Bem aos fundos do terreno
tem recantos pouco percorridos depois do falecimento do meu avô. Um caso a
parte nessa casa, lembranças a parte. É um velho galpão que o velho mesmo
construiu. Onde tem uma churrasqueira, outrora muito usada, uma velha gamela
rústica enorme, para grandes churrascos, agora minha (e que tenho a ousadia de
usar). Uma chaira esquecida, também rústica, agora minha. Uma pedra de afiar
moldada por ele mesmo, com as marcas de imemoráveis ferros. Aquele fundo era um
laboratório a céu aberto, no qual chegávamos por um caminho pacientemente calçado
por tampas de garrafa bebidas na casa. Quero dizer que cada objeto lá era talhado,
martelado, serrado, todo material em movimento, todo objeto trabalhado,
rusticidade pura. Parece todo o contrário da parte “mais nobre” da casa, diariamente
frequentada pelas visitas, pelos mais chegados, sempre, mesmo depois que a
parte do fundo da casa fechou, não só para os mais chegados, para todo mundo,
com esses objetos esquecidos até uma visita recente onde arrecadei os
mencionados, totalmente esquecidos lá. Voltemos aquelas saudosas tardes de
infância, já sem o velho, na parte menos nobre da casa, entre os cristais. Eu
sentia a imponência desses objetos de lá, mas não comungava de todo. Queria
inventar algo, como meu avô. Minha tia-avó (chamo ela de tia, contra a distância
que tia-avó sugere, ainda que habite o mundo dos avós) sentava comigo e fazia um
trânsito incrível, entre minha imaginação em aberto, os objetos valiosos dela,
e o movimento que estava em tudo que ia da porta que dava para o pátio até o
galinheiro que ficava bem no fundo do terreno. Íamos no fundo do pátio procurar
uma corda para fazer um laço, eu ouvia a história de outro objeto da casa, uma
lembrança, mas tudo estava na mesa, nesse laboratório que é a tarde de uma
criança.
Sinto um legado nessas coisas que me desacomoda, isso tudo me
olha de volta. Não quero ir fundo demais, tenho outros objetos mais inocentes.
Meu pai, em algum momento da vida, trabalhou em algum lugar em que ele achou necessário
usar uma máscara, comprar uma máscara. Suspeito desse necessário porque conheço
profundamente o personagem, e o apreço por alguns objetos esquisitos, com o
qual ele sempre gastou o dinheiro, como bússolas, telescópios, máscaras de gás.
Meu pai também frequenta esse espaço entre o laboratório e o colecionador, de
uma forma diferente, mas compartilha do valor (mais com os objetos do galpão, para
resumir). Um objeto desses é essa máscara de borracha, de carvão ativado, verde.
Engraçado um objeto desses inesperadamente fazer falta por um valor de uso.
Pois foi essa falta que disparou esse texto. Estamos em meio a pandemia, do
momento que escrevo esse texto isso é algo tão presente e comentado o tempo
todo que chega a ser esquisito escrever isso, sim, “em meio a pandemia”, “em
tempos de quarentena”. Pois bem, não botamos o nariz (descoberto de máscara)
para fora de casa a mais de dois meses. E dá pra contar nos dedos de uma mão
quantas vezes, mesmo com máscara, saí nesse tempo. Me faz muita falta correr,
sempre. Fazia anos que eu não passava um inverno (ou véspera do inverno) em
Porto Alegre. Adoro correr no frio. Adoro curtir um lugar enquanto corro. Não
tem corrida melhor do que essa corrida pelos territórios da minha infância a
céu aberto nessa capital, dos meus passeios diários, das minhas caminhadas a
esmo, de sombras de árvores onde passei muitas horas lendo ou conversando com
alguém, a redenção. As máscaras que tenho aqui parecem muito leves ou muito
pesadas pra correr na Redenção. Lembrei dessa máscara esquisita da minha infância,
pela qual tantas vezes respirei. Não está mais aqui, esses objetos surpreendem
sempre na presença ou na ausência repentina. Mas esses mais íntimos, da minha
infância nesse apartamento na reta para redenção, estão inventariados com
sorrisos. Não preciso dessa máscara, ela está cravada em mim, sem sequer fechar
os olhos eu sinto a textura da borracha dela. Sempre foi mais minha do que do
meu pai, ainda que ele que tenha comprado e utilizado para coisas mais sérias.
Alguns desses objetos de infância ele me deu, mas nem precisava, na época.
Agora menos ainda. É a largura do sorriso, a presença física desses objetos.
Tenho um pudor de nunca deixá-los a vista. Quando alguém dá pela existência
deles alguma palavra eu não sei o que responder, do indelével eu sinto que eles
me olham, sei lá o que tem pra dizer a essa altura, para onde eles vão com o
passar dos anos. Se um dia vou montar uma estante, prateleira ou cristaleira,
da qual teria (ou não) coragem de desce-los diante do tédio de um possível
herdeiro, se quereria perscrutar o valor deles pra essa criança.
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