segunda-feira, 1 de junho de 2020

Os objetos da infância e os objetos da velhice.


Os objetos envelhecidos. Os objetos remanescentes. Lembro das salas onde eu fazia passar as horas quando era criança como grandes espaços completamente forrados de objetos. Alguns deles de uma contemplação passiva, como objetos de artes, são para mim os mais aterradores hoje em dia. As vezes me deparo com alguns que restaram ou que me couberam, parcialmente esquecidos em algum canto de casas que são menos minhas agora. Esses objetos se acumulam e retrospectivamente tenho uma perspectiva sobre a velhice em torno desses objetos. Uma coisa engraçada é que na minha infância de convívio intenso com familiares mais velhos, meus avós e tias-avós, conquistei um reconhecimento do meu apreço respeitoso a determinados objetos, em outras palavras, não vou quebra-los; é porque compartilho desse apreço de valorização contemplativa, da aura deles, que quero chegar mais perto, mas isso quase não é uma brincadeira. Ou melhor, é uma brincadeira com a aura. Quando meus parentes faleceram nessa aura toda não resta mais espaço algum para brincadeira. Eu sinto. Talvez por sentir assim me sinta digno da tarefa de guarda-los, talvez longe da minha vista cotidiana, do peso da banalização desse olhar de volta, talvez ainda não seja tempo disso, sou jovem ainda. Mas já avanço para a reformulação deles em mim, como objetos da velhice, quero reaproxima-los na imagem que cultivo deles, quase incomunicável, meus objetos de infância. Chamo de meus, muitos sumiram até da lembrança dos antigos donos, agora são meus, do panteão da aura me olham de volta, me convocam não sei a que. São objetos esquisitos, tenho até constrangimento de lembrar. São salas de estar com um ruído de TV no fundo, são horas e horas de tardes frias escovando o tapete da sala à contrapelo, desenhando, mirando uma estante, uma cristaleira. Tem um elefantinho sempre de bunda para a porta da entrada, recentemente quebrado. Tem duas árvores de metal, com retratos 3x4 pendurados, estou em um deles, um galho fino à meia altura do cume. Mas esses objetos me doem.
Penso em uma casa mais distante agora, da minha avó, falecida recentemente. Uma casa recentemente frequentada e agora ocupada pela minha tia-avó da minha infância e de toda minha vida, entregue aos cuidados de uma cuidadora, que era da minha avó, nessa casa. Pois bem, essa minha tia fazia um trânsito dos objetos para minhas tardes entediadas nessa cidade do interior do Rio Grande do Sul. Do auge do meu ócio eu procurava inventar alguma brincadeira, algum uso ou contemplação. Isso em uma casa completamente abarrotada de objetos centenários, de cristaleiras, lembranças, placas, retratos, louças, máquinas de costura, objetos de tias, mães, avós, de uma casa assentada e que perdura uma administração feminina. Bem aos fundos do terreno tem recantos pouco percorridos depois do falecimento do meu avô. Um caso a parte nessa casa, lembranças a parte. É um velho galpão que o velho mesmo construiu. Onde tem uma churrasqueira, outrora muito usada, uma velha gamela rústica enorme, para grandes churrascos, agora minha (e que tenho a ousadia de usar). Uma chaira esquecida, também rústica, agora minha. Uma pedra de afiar moldada por ele mesmo, com as marcas de imemoráveis ferros. Aquele fundo era um laboratório a céu aberto, no qual chegávamos por um caminho pacientemente calçado por tampas de garrafa bebidas na casa. Quero dizer que cada objeto lá era talhado, martelado, serrado, todo material em movimento, todo objeto trabalhado, rusticidade pura. Parece todo o contrário da parte “mais nobre” da casa, diariamente frequentada pelas visitas, pelos mais chegados, sempre, mesmo depois que a parte do fundo da casa fechou, não só para os mais chegados, para todo mundo, com esses objetos esquecidos até uma visita recente onde arrecadei os mencionados, totalmente esquecidos lá. Voltemos aquelas saudosas tardes de infância, já sem o velho, na parte menos nobre da casa, entre os cristais. Eu sentia a imponência desses objetos de lá, mas não comungava de todo. Queria inventar algo, como meu avô. Minha tia-avó (chamo ela de tia, contra a distância que tia-avó sugere, ainda que habite o mundo dos avós) sentava comigo e fazia um trânsito incrível, entre minha imaginação em aberto, os objetos valiosos dela, e o movimento que estava em tudo que ia da porta que dava para o pátio até o galinheiro que ficava bem no fundo do terreno. Íamos no fundo do pátio procurar uma corda para fazer um laço, eu ouvia a história de outro objeto da casa, uma lembrança, mas tudo estava na mesa, nesse laboratório que é a tarde de uma criança.
Sinto um legado nessas coisas que me desacomoda, isso tudo me olha de volta. Não quero ir fundo demais, tenho outros objetos mais inocentes. Meu pai, em algum momento da vida, trabalhou em algum lugar em que ele achou necessário usar uma máscara, comprar uma máscara. Suspeito desse necessário porque conheço profundamente o personagem, e o apreço por alguns objetos esquisitos, com o qual ele sempre gastou o dinheiro, como bússolas, telescópios, máscaras de gás. Meu pai também frequenta esse espaço entre o laboratório e o colecionador, de uma forma diferente, mas compartilha do valor (mais com os objetos do galpão, para resumir). Um objeto desses é essa máscara de borracha, de carvão ativado, verde. Engraçado um objeto desses inesperadamente fazer falta por um valor de uso. Pois foi essa falta que disparou esse texto. Estamos em meio a pandemia, do momento que escrevo esse texto isso é algo tão presente e comentado o tempo todo que chega a ser esquisito escrever isso, sim, “em meio a pandemia”, “em tempos de quarentena”. Pois bem, não botamos o nariz (descoberto de máscara) para fora de casa a mais de dois meses. E dá pra contar nos dedos de uma mão quantas vezes, mesmo com máscara, saí nesse tempo. Me faz muita falta correr, sempre. Fazia anos que eu não passava um inverno (ou véspera do inverno) em Porto Alegre. Adoro correr no frio. Adoro curtir um lugar enquanto corro. Não tem corrida melhor do que essa corrida pelos territórios da minha infância a céu aberto nessa capital, dos meus passeios diários, das minhas caminhadas a esmo, de sombras de árvores onde passei muitas horas lendo ou conversando com alguém, a redenção. As máscaras que tenho aqui parecem muito leves ou muito pesadas pra correr na Redenção. Lembrei dessa máscara esquisita da minha infância, pela qual tantas vezes respirei. Não está mais aqui, esses objetos surpreendem sempre na presença ou na ausência repentina. Mas esses mais íntimos, da minha infância nesse apartamento na reta para redenção, estão inventariados com sorrisos. Não preciso dessa máscara, ela está cravada em mim, sem sequer fechar os olhos eu sinto a textura da borracha dela. Sempre foi mais minha do que do meu pai, ainda que ele que tenha comprado e utilizado para coisas mais sérias. Alguns desses objetos de infância ele me deu, mas nem precisava, na época. Agora menos ainda. É a largura do sorriso, a presença física desses objetos. Tenho um pudor de nunca deixá-los a vista. Quando alguém dá pela existência deles alguma palavra eu não sei o que responder, do indelével eu sinto que eles me olham, sei lá o que tem pra dizer a essa altura, para onde eles vão com o passar dos anos. Se um dia vou montar uma estante, prateleira ou cristaleira, da qual teria (ou não) coragem de desce-los diante do tédio de um possível herdeiro, se quereria perscrutar o valor deles pra essa criança.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

desaguando


arejado num lugar fechado, um quarto. porque é feito em quarto e sala ao mesmo tempo o tempo aqui dá voltas em poucos passos. uma coreografia cuidadosa, de poucos movimentos. em dias de quarentena, onde o abismo no nosso caminho extrapola abstrações; quando a imaginação faz cotidiano, faz mais, compõe as listas de coisas para fazer. ruídos discretos da casa em amanhecer. chinelos, chaleiras, detalhes fortuitos; contatos, chiados, esquecimentos. cumprimentos, protocolos, superfícies. coisas de manhãs e do fino arranjo de extravagâncias diárias. esse quarto de segundo andar é um barco bem assentado na terra, atravessado de ar. desaguando.


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

insalubres


em Foucault o ilegalismo da delinqüência é desvelado na minúcia: são tramas necessárias ao poder de esquadrinhá-los, os infames, em redes, organizando o querido e necessário medo do perigo permanente. não são abalos, são engrenagens. a subversão inverte no sistema, o sistema subverte o subversivo nas “casas de correção”: as “casas de passe”, “o inevitável motel”. e não são lapidações, são mastigações. mastigados são devolvidos para o sistema alternativo, integrados no quadro da delinqüência, no desencaixe do jogo maldito dos traficantes, das prostitutas, dos brigadianos, dos pervertidos; abusados. toda mão-de-obra febril convoca medidas de um punho que sufoque o insalubre.

terça-feira, 22 de junho de 2010

baquetas

saquei que tinha acabado de tocar o tambor depois de uns bons minutos, e no hiato que procedeu a pausa parece que a gritaria disforme uniformizou a falta de ritmo de umas heterogêneas percussões, mas eu não pensava em nada disso. sacava na cor do chão, na cor de um por um passando e na alegria que era de não ir pra lugar nenhum, estar na roda, sem tempo, sem prazo, sem talas, sem pressa, sem prender, sem soltar, sem pender. era a festa, era um gol.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

outras bandeiras

sonhei que sonhava a esmo, mas preocupado, pelas ruas de Fortaleza. queria ter de tudo, mas meu tempo de brincar tinha ido embora. agora, perdia o fio da segurança entre os papéis de São João. sumido também o fio que me amarrava às ruas dali e às outras, do Maranhão.

mar de geraçõesfoto: mário borba

quinta-feira, 4 de março de 2010

o Grande e a reprodução interminável

o Grande andava como um torto na muvuca da festa natural, em plena pipoca de um trio elétrico do segundo dia de carnaval soteropolitano. os trios sempre pareceram ligados num fio reprodutor interminável que se estende parindo tendências de novos fios condutores que se prolongam no além-bahia. nesse rumor reproduzido imbricam manifestações tropicando samba-reggaes e axés, que a sociedade, do/no asfalto, espelha gastando o salto. o Grande sabia de cor as formações, as raízes e os cantos de cada uma das coxas que guiavam aquelas marchas. sabia ler isso e via a possibilidade de com outros grandes encabeçar uma redescoberta das mesmas coisas, uma reprodução do reproduzido por outra leitura, algo que refaça uma nova Bahia, e dela, novos Brasis. E em tudo isso não estaria só a viagem da redescoberta, de retorno a um conjunto efetivo de genealogias, mas algo pra produzir uns novos sujeitos, algo a nos [re]produzir, a nós, de novo e de novo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

momentos e contextos . “unheimlicheit”

não podemos jamais ir pra casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos de “autenticidade”, pois há sempre algo no meio. não podemos retornar a uma unidade passada, pois só podemos conhecer o passado, a memória, o inconsciente, através de seus efeitos, isto é, quando este é trazido para dentro da linguagem, e de lá embarcamos numa (interminável) viagem. diante da “floresta de signos” (baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias (as “relíquias secularizadas”, como bejamin, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em que esquadrinhamos a constelação cheia de tensão que se estende diante de nós, buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-lhe forma. talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e contexto que temos… apuds. Chambers. Hall.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

além das superfícies

tem fichas e fichas sendo jogadas no chão, direto da cabeça. me subiu e desceu o sangue todo. cantei desvairadamente até ficar rouco. e hoje tem mais, amanhã mais, até que eu me sinta pronto e vivo e feliz e sedento o suficiente pra embarcar pra esses lados próximos das gu-i-a-na-s pra eu correr atrás dos silêncios saciados . atrás de qualquer coisa que eu consiga e queira encarar por horas como o tal fio de luz coado da janela ou qualquer coisa que eu nem imagino atrás de qualquer duna que eu nem imagine absorto ouvindo o latido dos bichos que latem, que também por aqui é coisa, e também são outras e tantas coisas que fazem o sangue correr . não quero ir embora nem ficar . eu quero ficar um pouco e ir embora um pouco . quero curtir o dia e o quarto . entre a cachoeira e a praia e o trânsito e esses tomates gelados que a gente morde e escorrem um pouco e são tão bons com ou sem sal, nem precisam.

domingo, 20 de setembro de 2009

mais pra cima

acordei com o ar pesado. e outro teto, ao largo. uma, duas, três, tudo escuro, ainda. um som indefinível no fundo, sei lá se perto ou longe. suor, cheiros, ressaca. ela ainda não acordou. o calor é infernal, não era pra tá, mas tá. olhei umas capas de plástico, de discos, trincadas. de tudo. uns copos de água. empurrei a janela, pra levantar. sono não tinha mais. ela dormindo, discreta, com um quê de modelo meio desbotada, com jeito de quem chora, em branco e rosa, linda. então me deu vontade de caminhar mas, meio grogue, quis ficar por ali. acender um cigarro e olhar pela janela. um vento bom vinha da rua. alto pra burro. centro da cidade. pensei em encostar pra dizer qualquer coisa, mas era pura fagulha de ansiedade, e o vento me varria. era perfeito ficar por ali, tomando a fresca que vinha daquela altura, como se fosse chover. tentar ver e não ver nada, sem óculos, pela janela. as luzes da cidade, de longe, difusas, viradas em estrelas de várias pontas. entre tudo o hipnótico movimento dos poucos pontos de transeuntes pra lá e pra cá, a essa hora. queria andar por ali por baixo como se visto de cima, nessa onda sozinha que não compactua com a monotonia previsível das ondas-pra-lá-e-pra-cá de todos os dias. quis isso tanto quanto quis um chimarrão, uma torrada, ou coisa parecida. quis tanto quanto quis ficar por ali por baixo, ali por cima. lá embaixo uns pequenos pontos apressados circundavam um outro ponto, sem contraste ou nitidez compreendi um bote. dispersaram com a mesma convicção do bote. e esse ponto esteve lá parado, talvez perplexo, num drama qualquer. os outros pontos, no drama, na grana, ou na degradação, espalhavam-se, apressados. o ponto parado dava falta do que viu faltar. sei lá o que. eu dava falta dos óculos e procurei. tava no canto do quarto, encostado no colchão, do lado. sabia que estava ali sem lembrar de nada. nos mesmos cantos ausentes se não tá no rosto. do lado da cama, a qualquer altura ou lugar. meio trincado, coisa boa. daí me senti completo e saciado. pra ser sincero não me esforçava pra lembrar com clareza das coisas que aconteciam, é um bom hábito, a sensação. se tava massa, tava massa. tava calor e abri mais a janela. que vento. me deu vontade de por a cabeça pra fora da janela, curtir aquele vento na cara, olhando mais pra cima e menos pra baixo.

domingo, 30 de agosto de 2009

bola oito

esfera

uma página e outra, sem política, é o fim. imbricaram os autores. toda trupe que trata do poder indecente da superfície desinteressa, a superfície é impalpável. basta, de ler porcaria tratar de partidarismo com pompa de astronomia. política é o fim. ateus ou fiéis nisso forjam um desprezo agora pela puta que os pariu, mascarando ruptura. a conversão do olhar, viciado. se um rebanho assustado muge em uníssono nessa monotonia volumosa, que derrubou árvores e árvores pra ser realizar, dizendo que de certo modo entendeu a cara magia do funcionamento sutil dos mais modernos rumos da coisa, para profetizar onde cairá, encaçapada, a esfera pública.

terça-feira, 16 de junho de 2009

bandeiras

radio

pra varrer a opacidade do cômodo, da manhã, e do silêncio, num gesto gingado e viciado, achou com o pé o botão vermelho do som, que chiava: ...um menino cresceu entre o afã e a curva, entre a carne e a ficha... subindo em pedreiras ‘quiném’ lagartixa... boréu, juramento, urubu, catacumba, nas rodas de samba, beirando a macumba... o dia clareou, o galo já de longe cantou, é hora... vou ter que trabalhar... não posso mais sonhar... a cama está desfeita mas eu não dormi... não posso mais sonhar... mas só até as dez... só até as dez... e o desatino invejoso do rádio: quem não inveja a infeliz, feliz, no seu mundo de cetim, assim, debochando da dor, do pecado, do tempo perdido, do jogo acabado... bandeiras se desmanchando...

segunda-feira, 8 de junho de 2009

e os vegetais

contava um, quarto, dois, cozinha, três, quatro, e descia. e inalava forte o hálito viciado da garagem, ainda no gosto do café, e, na tontura sonolenta de imaginações espontâneas empurrava a porta e saía, como um gás que se desprende. na frente da casa parava por uns três minutos, compactuando com a mudez de todas as manhãs e dos vegetais. aqui, no translúcido manto de calma sobre o claustro dos quintais.

[...]

subjetiva

foto: mário borba

segunda-feira, 1 de junho de 2009

foto

eu ia bater a foto, mas, de repente, não era eu, não ali, batendo aquela foto. sem mergulhar fundo demais nessa viagem apertava o botão e a máquina indicava qualquer coisa que eu não entendia mais. sem saber onde andava a foto, que eu via, congelada na minha frente, desliguei a máquina. depois rolou o deleite de um ensaio, revelado, que não parecia ser meu.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

micromiscelêneas e o resto do disco

os textos são mirrados. e os discos fragmentados em duas dúzias de arquivos, de onde chegam três ou quatro pra arquivos pessoais objetivos e pouco pacienciosos. não faz sentido o que transpõe o instantâneo. os outros por aí fazem coisas lindas contanto que se tenha paciência, contanto que seja breve, porque se houve a vitória de ficar mais que sabendo, se houve a vitória de presenciar alguma coisa, pode ser lá genial. “genial”, disse o paciencioso que presenciou a apresentação inteira. pode-se abreviar o noites do norte, que já é uma abreviação, na lembrança de zumbi. abreviar o cinema transcendental na oração do tempo. tambong e não é céu. e assim mesmo valeu, genial. e ainda tem a continuação, que vira link, todo o resto do disco.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

do terceiro ao quinto

aprendi e começo a postar umas músicas próprias. essa é da trilha sonora que fiz pra um curta que não chegou a sair do papel. que seja trilha nesse "contexto" então. do terceiro ao quinto, mário borba.


 mário borba - do terceiro ao quinto

terça-feira, 26 de maio de 2009

contexto

caetano cantava no rádio, a todo volume, e era o que matava o silêncio tão previsto e anunciado. tentamos novas tentativas. tentamos tantas vezes, perdemos tantas vezes. e nos nuances de tantas idas e vindas me via crescendo também, além de mim, ou vivendo, aqui ou ali, mais que antes. e de novo, mais que antes. mesmo sem saber, mas sabendo muito bem o que estava sendo executado no piloto automático pela enésima vez. o carro sabia o caminho de cor. sem remorso ele nos conduzia, anestesiados, digerindo. e eu não pensava no que foi, no que seria, no Transa do caetano, eu pensava no caminho e nas cascas. que já caíam no carro, as que já estariam soltas das paredes do quarto, da sala, de todas as construções reconstruídas tantas e tantas vezes. voava já. quis chegar em casa de uma vez e me ver me espreguiçando no meio de tudo aquilo, daí pensei no óbvio. não estaria eu com vassouras e sacolas pensando nas coisas fora de contexto, eu, que não elejo mais contextos há muito tempo.

sábado, 23 de maio de 2009

disposição

já estava frio o metal da fechadura que ele tateava ansioso por entrar, na casa, a dele, por uns dias. passaram horas que enquanto gelavam o metal marearam o clima do cair da tarde ao quase amanhecer. pensando coisas vagas da topografia da cidade acompanhava absorto o movimento desperto dos pescadores puxando o barco. abriu a porta, cansado, pensando na delícia de um chimarrão. a ausência de erva, cuia e derivados, a disposição minimalista das coisas, a estranheza da porta e a simplicidade do banheiro sustentavam uma sensação esquisita, de, ainda, não estar em casa.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

o despertar

era outro, olhando o chão exatamente como ficava, umas marcas a mais na superfície-pó, e o pó na superfície, torpor. desvelado qualquer resquício de rotina: malícia, surpresa e torpor. iscas sinuosas em cordas de rodas, nada muito sério, todo o esplendor em belezas espontâneas, em todo lugar. sem tempo, sem fichas pra cair, e uma consciência que emerge em viagens inconstantes. absorto, adivinha novas pegadas no pó da superfície. e desperta.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

do lugar do sujeito

analisando o lugar de fala nos discursos, em livro, em som, no abismo, das esquinas: o lugar do sujeito está em lugares diferentes, móvel, óbvio. um sujeito heterogêneo se auto-ironiza: o sujeito-emissor-propriamente-dito se afirma pela desvalorização do emissor-pessoa-no-mundo: “lanço-me agora em carreira artística, cumprindo um velho projeto”.

artistico

segunda-feira, 16 de março de 2009

sobre os gols que não foram novidade

depois de dormir por horas parece que o quarto todo se espreguiça comigo num sono ansioso e preguiçoso que quero terminar, mas não consigo. o sol invade o quarto por todos os cantos e uma nesga chega no rosto. pronto. objetivos preciosos e condenáveis no sonho, coisas que eu tinha que fazer ainda antes de acordar. agora é ligar a TV ou ler o jornal. Lula e Obama dão risadas juntos na capa, a conversa é longa, é o que diz na manchete. Chávez toma portos e aeroportos, sisudo, na foto. Sant´anna alheio a essas bobagens todas comenta o empenho de uma senhora, que lhe falta o nome da memória ainda durante o discurso – Ana... Ana... Eva... - expõe sua irritação com o trânsito e com o plano do Grêmio para o campeonato gaúcho, a idéia de poupar titulares. a ele não agrada, mas respeita. segue, o jornal é sempre igual. as mesmas pessoas, os mesmos processos, as mesmas paradas. os gols, o tempo, a dupla de rapazes que faz sucesso nacional. ontem eu vi os gols, alguém escutou os caras na novela e logo cedo, tapado, senti frio. parece que nada era novidade nem ontem. mesmo nas transmissões mais simultâneas, ouvindo o jogo pelo rádio a alguns segundos da TV, os gols não eram novidade.

domingo, 7 de dezembro de 2008

horas

olhando para o chão, bebendo vinho, vendo os quadrados dos ladrilhos se moverem devagar. a batida do relógio da parede, embalando, distante, a rotineira nostalgia. sem cristais líquidos, sempre a mesma, a hora certa, nos inebriantes tic-tacs e peiiins. ele pode receber todas as palavras novas, mas ninguém mais lembra do que todos diziam quando um relógio foi fixado na parede. as crianças brincando na varanda e o velho constatando que está torto. ninguém mantém vivo na memória como ele, cuidadosamente embalado toda noite, o sorriso no rosto do tio entrando na casa com aquela caixa de madeira envernizada, o pêndulo dourado, tic, a zoeira de sempre, casa cheia, tac, o cheiro da carne da cozinha, tic. tac. na parede. dezenas trabalham na mesma terra de antes, aradores, cavando, sem mensurar quanto vale cada parte disso. dentre os peões: “fogo?”. lá de cima da torre de observação o encarregado acendia um cigarro de palha, e o sol baixando, guardava a vista de mulheres que iam e vinham, descalças. alguns baldes. lá longe um gato cinza grunhiu exatamente depois que o velho relógio, de dentro da casa, badalou as sete horas da tarde.